A decisão de não escrever neste blog sobre filmes que não vi no cinema tem alguns revezes, como por exemplo só falar da porcaria que passa pelas salas de Coimbra ou deixar de fora filmes obtidos por meios menos... hum.... legais. Por vezes tenho a impressão que ninguém acredita que nem gosto assim tanto de cinema mainstream, ou que tenho alguns guilty pleasures de cinema mau como toda a gente. Mas enfim. Resolvi fazer uma excepção daquelas muito grandes, isto é, não só vou falar de um filme que não vi no cinema, como não vou fazer uma crítica ao filme. Vou sim fazer um magnífico paste de uma parte de um trabalho que fiz sobre o objecto em questão. Cadeira, Análise de Argumento. Não sei, apeteceu-me. Vai fazer um tremendo contraste com o meu estilo (?) habitual, mas olhem, para desenjoar um bocado.
A parte do trabalho é sobre as personagens de No Country for Old Men. As primeiras partes falavam, respectivamente, da comparação livro/argumento, e das especificidades de argumento. Ambas são demasiado 'aluno de cinema', por isso escolhi a última para pôr aqui.... aí vai.
As Personagens
MOSS
What is he supposed to be, the ultimate bad-ass?
WELLS
I don’t think that’s how I would describe him.
MOSS
How would you describe him?
WELLS
I guess I’d say… that he doesn’t have a sense of humor.
O que é afinal uma personagem principal, e daí derivado o que faz uma personagem secundária?
Segundo Ken Dancyger e Jeff Rush,
The main character differs from secondary characters in a variety of ways. The primary difference is that the main character undergoes a metamorphosis during the course of the story. On the other hand, the secondary characters do not change and, in fact, necessarly serve as a source of contrast to the main character. Through interaction with the main character, secondary characters help to move the story along.
Anteriormente definimos Moss como a principal personagem do argumento de No Country For Old Men. Mas se o é, porque o vemos de forma mais distanciada do que Bell ou Chigurh? E porque morre ele no final do segundo acto?
Moss é a personagem principal porque é contra ele que o antagonista, Anton Chigurh, se move. Bell não pode ser o protagonista porque nada contribui para o desenrolar da acção. Talvez uma definição de protagonista mais adequada ao nosso objecto de estudo seja a de Yves Lavandier: Llamaremos protagonista al personaje de una obra dramática que vive el mayor conflicto, por lo tanto, a aquel con quien el espectador se identifica (emocionalmente) más. La mayor parte del tiempo se trata de un conflicto específico, también llamado conflicto central. Por eso el protagonista posee, en general, un único objetivo, que intenta alcanzar a lo largo de todo el relato y ante el que va encontrando obstáculos. Sus intentos y las dificultades a la hora de alcanzar el objetivo determinan el desarrollo de la historia, lo que llamamos la acción. O espectador identifica-se com Moss porque ele é uma vítima dos acontecimentos, está em perigo, em dificuldades. O objectivo dele pode ser ficar com o dinheiro, mas isso ao espectador não está em causa: o que interessa é que, com dinheiro ou sem ele, o protagonista sobreviva. Ironicamente, quando vemos Moss pela primeira vez ele está a caçar; pouco tempo depois passa de caçador a presa.
Moss pode ser o protagonista de No Country For Old Men, mas não é um protagonista comum. Não é uma personagem ‘heróica’, e apesar da sua inteligência (esconde a mala do dinheiro na conduta do ar do motel, descobre o transmissor no meio das notas) é difícil acreditar que ele consiga fugir por muito tempo de Chigurh ou dos mexicanos. Aliás, ele nunca enfrenta os seus perseguidores; prefere fugir. O único momento de confronto é quando Moss telefona a Wells e descobre que é Chigurh que está do outro lado da linha, e o ameaça: Yeah I’m goin’ to bring you somethin’ all right. I’ve decided to make you a special project of mine. You ain’t goin’ to have to look for me at all. Para Lavandier, os obstáculos não devem parecer intransponíveis pelo protagonista, ou a história deixará de fazer sentido - La idea es conseguir que el espectador se debata entre la esperanza y el temor. Neste momento breve julgamos que Llewelyn estará à altura de Chigurh (afinal ele conseguiu já duas coisas impossíveis: vê-lo e ficar vivo, e atingi-lo numa perna) e as coisas poderão acabar bem: a ilusão de uma vitória de Moss torna a morte deste um choque para o espectador.
Moss despoleta toda a acção mas não percebemos quais as suas razões para agarrar na mala de dinheiro. Não nos é dada uma resposta sobre o que ele planeia fazer com aquele dinheiro todo. Mais do que sobreviver (ele sabe que se expõe ao perigo no momento em que agarra a mala), o único objectivo de Moss é ficar com o dinheiro. A sua tragic flaw é a teimosia em crer que é capaz de se desembaraçar sozinho das pessoas que o perseguem.
Mas este objectivo único, definidor de uma personagem principal, mais não parece, pela sua falta de fundamento, do que um pretexto para um despoletar de violência, um macguffin, para utilizar o termo hitchcockiano. É como se Moss fosse, além ou apesar de protagonista, uma personagem irónica, i.e., something of an innocent who unleashes a course of events that "punish him or her" far beyond what we might expect given their actions.(...) As Frye claims, the story is then pushed toward myth. O argumento dos Coen, ao colocar Llewelyn Moss em primeiro plano, transforma uma história de um velho xerife avassalado pelos acontecimentos à sua volta (o que é a lei, o que era a lei antes, se a lei faz sentido) numa reflexão sobre a violência, não dos anos 80 em específico, mas dos nossos dias. O argumento joga com o fascínio actual da violência, com o, podemos mesmo assim chamar-lhe, erotismo do gore, e despoja-o do seu encanto, apresentando-o em toda a sua frieza, sem música de fundo. Como sublinham Dancyger e Rush, An ironic character promotes distance between us and the character, and allows us not only to sympathize with the character's plight, but also to wonder why events and people seem to conspire against him. Often, the ironic character is portrayed as an innocent victim of a person or system. This type of character is very useful when you feel that the ideas are more important than the people in your screen story.
Ed Tom Bell, xerife, é o old men a quem o título se refere. Sobre ele parecem ser indicadas as palavras de Dancyger e Rush sobre “reflective agency”: a character [that] does not directly affect the action line, but rather one in which his reaction shapes the viewer’s understanding of the scene. A Bell cabe aquilo que os teóricos designam de background story, a parte narrativa relativa às emoções, aos dilemas interiores. Moss e Chigurh estão envolvidos de uma forma excessivamente intensa na foreground story, orientada para a linha de acção, para se poderem permitir a existência de uma vida interior. Esse ‘peso’ recai sobre Bell, o carro-vassoura das consequências da acção dos outros dois.
De facto, Bell é um espelho para toda a acção, e se no romance de McCarthy ele se mostrava à altura de representante dos velhos tempos, intrigado pelos acontecimentos e derrotado face a eles, aqui não é mais do que uma personagem desencantada e inerte que não se quer meter em sarilhos. Ele é o comentador inconsciente do que se passa, distanciadamente. He seen the same things I seen and it made an impression on me, diz ele a certa altura, mas não acreditamos que esteja impressionado com o que viu. A frieza com que analisa as cenas de crime (realçada pelas reacções contrastantes do impressionável Wendell: Hell’s bells they even shot the dog), a sua descontracção em beber leite sentado no sofá onde sabe que horas, minutos antes esteve sentado Chigurh, a calma com que se senta no café a ler o jornal, caracterizam-no como uma personagem habituada à violência, tão habituada que está mesmo dormente perante ela, não sentindo qualquer desejo de salvar o mundo, apenas a necessidade de auto-preservação.
O momento mais emblemático do Xerife Bell é quando ele entra no quarto de Moss, pensando (acertadamente) que Chigurh está lá dentro. É o único momento em que vemos Bell demonstrar alguma coragem, algum desejo de morrer por um objectivo maior. Mas o seu desejo de valentia sai frustrado: Chigurh não o ataca. Bell perdeu a sua oportunidade de tomar o lugar de Moss, de protagonista.
Anton Chigurh é a primeira personagem que nos é apresentada; a voice over de Bell não nos diz nada sobre o xerife, não é perceptível se estamos a ouvir um narrador heterodiegético (porque a história que a voz conta se confunde com os acontecimentos do ecrã, embora haja um momento de dúvida temporal até sermos situados no presente por The crime you see now… sobreposto ao algemar das mãos de Chigurh) ou uma personagem participante, como é o caso. Chigurh é a primeira personagem a agir, mas não fala. As suas acções caracterizam-no – as suas palavras só virão mais tarde.
Chigurh é a personagem com menos variantes ao longo da narrativa, mais compacta – opaca mesmo - e arquétipa. É, como já foi referido, o antagonista. É também a personagem com mais carisma, aqui entendido na definição de Dancyger e Rush. Segundo eles, as características de uma personagem carismática são as seguintes: uma imperfeição subtil; um chamamento ou sentido de missão; agressão ou intensidade polarizada; uma dimensão sexual; capacidade para convencer os outros. De uma forma mais sintética, [t]he key element is that we quickly notice that they are different, but we are not put off by them; instead, we are curious about them. A associação de carisma com antagonismo não é novidade; o que é particular neste caso é que, porque Moss é uma personagem principal pouco convencional, o papel de herói – aliás, de anti-herói – recai sobre Chigurh. É ele que se mostra a personagem mais capaz de ultrapassar os obstáculos que o impedem de alcançar o seu objectivo (mesmo que não sejam obstáculos, ele faz questão de os ultrapassar na mesma). Sobre o protagonista não convencional, dizem-nos Dancyger e Rush:
The trade-off, between classic main character and the main character who shares the same quandaries and questions as the secondary character, is the loss of the hero. If one character is no more privileged than any other character, heroic action becomes, simply, action, and the dramatic struggle of the main character becomes, in one fashion or another, the struggle of each character.
Esta perda do estatuto heróico do protagonista para o antagonista tem duas consequências imediatas: não acreditamos que Llewelyn Moss consiga vencer Chigurh; e sentimos uma certa empatia com este, quando nos é dado o seu ponto de vista (geralmente) triunfante.
Perhaps the similarities between protagonist and antagonist are more memorable than are the differences. Chigurh partilha com Moss uma característica fundamental: o dinheiro, apesar de ser aquilo que o move, não lhe interessa. Mais do que a meta, interessa-lhe o caminho. Ele quer ser the one right tool. Corrigindo, o que lhe interessa nem é o caminho. O que lhe interessa é fazê-lo bem, e chegar ao fim. Só assim se justifica que, após a morte de Moss, vá a El Paso matar Carla Jean. Ele só atira a moeda ao ar uma única vez (no filme duas); contudo, esse acto, pela sua força e simbolismo, fica-lhe para sempre associado. Onde está uma moeda, está Chigurh. Ou esteve.
Filmografia
COEN, Joel & Ethan, No Country For Old Men (2007)
Bibliografia
CARRIÈRE, Jean-Paul & BONITZER, Pascal. Prática del guión cinematográfico. Barcelona: Paidós, 1998.
COEN, Joen & Ethan. No Country For Old Men - adapted screenplay. Miramax, 2007.
DANCYGER, Ken & RUSH, Jeff. Alternative Scriptwriting - Sucessfully Breaking the Rules. Oxford: Focal Press, 2007.
FIELD, Syd. Manual do Roteiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
LAVANDIER, Yves. La Dramaturgia. Ediciones Internacionales Universitarias. Madrid. 2003
MCCARTHY, Cormac. No Country For Old Men. New York: Vintage International, 2005.
MCKEE, Robert. Story - Substance, Structure, Style and the Principles of Filmmaking. New York: HarperCollins, 1997.
SOUSA, Sérgio Paulo Guimarães de,. Relações Intersemióticas entre o Cinema e a Literatura - A adaptação cinematográfica e a recepção literária do cinema. Braga: Universidade do Minho/Centro de Estudos Humanísticos, 2001.
WOODWARD, Richard. Cormac McCarthy's Venomous Fiction. 19 de April de 1992. http://www.nytimes.com/books/98/05/17/specials/mccarthy-venom.html?_r=2&oref=slogin (acedido em 11 de Junho de 2008).