quinta-feira, junho 03, 2010

Io sono L'amore (2009), Luca Guadagnino



A família Recchi. Opulência. Etiqueta. Uma tragédia grega passada atrás de cortinas hermeticamente fechadas numa Milão de pormenores que não vêm nos postais. Uma mulher, Emma (Tilda Swinton), presa numa gaiola dourada e que abandona a sua entidade para voltar às raízes da terra e se envolver, qual Lady Chatterley, com o homem que a conquista com camarões singelamente preparados. Da neve e frivolidade inicial até ao êxtase estival antes dos créditos finais. Como se Visconti e Douglas Sirk se tivessem encontrado para uma colaboração inédita. Com John Adams de fundo, como se a música tivesse sido feita para o filme. Ou vice-versa.

Durante 11 anos Tilda Swinton acarinhou este projecto, e com Luca Guadagnino (vale a pena fixar o nome) ele finalmente viu a luz do dia, para gáudio dos olhares cinéfilos que há muito, muito tempo não tinham tal sobremesa nos ecrãs. Poder-se-á falar de haute cinema como se fala de haute cuisine? Haverá melhor exemplo de sinestesia erótica, estaremos perante um fino exemplo do cinema dos sabores? Os primeiros minutos podem parecer uma longa espera para o prato principal – todos os Recchi, todas as regras do bom gosto, uma realidade de vida em que não há trama, e nada se passa, apenas um quotidiano que não se deixa penetrar pelo mundo exterior, mesmo quando esse mundo é a audiência. Mas quando Emma, uma moderna Anna Karerina, se deixa seduzir pela arte culinária – ou pelo aroma de liberdade? – de Antonio, um amigo do filho, somos levados numa jornada até à inesperada catarse final – Tu não existes. E Emma deixa de existir apenas para começar a viver.

Se o preconceito torna de mau gosto ter opiniões favoráveis sobre filmes opulentos, cheios de técnica e com alta sociedade como protagonistas, Eu Sou Amor deita tudo por terra e faz-nos reconsiderar os nossos valores cinematográficos. Não só Tilda Swinton, regressada à velha art house na qual se criou como musa de Derek Jerman, mostra que é uma Actriz com direito a capital maiúscula, como o realizador Luca Guafagnino, ajudado pelo cinematógrafo Yorick le Saux (colaborador habitual de Ozon), inventa uma nova forma de filmar a cidade (Milão, Londres), baseando-se e recriando ao mesmo tempo o cinema italiano dos anos 60. A sensibilidade da narrativa, onde o desfecho dramático do segundo acto é-nos entregue sem a habitual faixa musical, e onde um simples prato de oucha – a sopa de peixe russa – desencadeia a tragédia, deixa um festim nos olhos, na mente e por fim, na alma.

Sim, o cinema italiano está para ficar.

Robin Hood (2010), Ridley Scott

quinta-feira, abril 08, 2010

Alice in Wonderland (2010), Tim Burton


Se há realizador que eu pensei que nunca, nunca me iria desiludir, esse era Tim Burton. Não havia um único filme em toda a sua longa lista (e eu vi-os todos, mes amis), que eu pudesse dizer, ná, não gostei lá muito desse. Mas estava já com receio que fosse acontecer alguma desgraça, algum dia. É inevitável, não é? E o destino tentou salvar-me, tendo demorado... um mês? mais? a conseguir ir ver este filme ao cinema. Toda a gente já tinha visto, as opiniões dividiam-se (COMO É QUE SE PODEM DIVIDIR??? COMO???), e eu achei por bem picar o ponto antes de chegar a Portugal.

Ora... nem sei por onde começar primeiro. Vamos pela história. Mas que raio? Sim, fazer uma sequela do Alice, muito boa ideia, toda a gente conhece a história original, também concordo, mas... que raio de história foi aquela? Sinceramente? Os primeiros dez minutos foram horrendos. E o resto do filme não melhorou. Aliás, quando Alice se atira para dentro do buraco no tronco de árvore, começa o verdadeiro pesadelo.

Não consigo ter qualquer empatia pela Alice, nem sequer rir do seu ridículo noivo, a única coisa que vejo acontecer são coisinhas pequenas desenhadas para fazer a plot avançar com o mínimo esforço possível, que não têm o menor interesse para mim (quero lá saber qual das rainhas ganha no fim, eu cortava a cabeça a ambas), a meia-hora do inicio já parecia que estava a assistir o filme há três horas, Helena Bonham Carter, minha cara, não consegues chegar sequer aos pés da Miranda Richardson no Blackadder II (e para a próxima, escolhe uma influência menos óbvia, ou disfarça mais), Johnny Depp, PORQUÊ?, e todos os sotaques durante o filme fizeram-me não perceber pívias do que se dizia a maior parte do tempo (legendas, onde, onde?). Feliz ou infelizmente, não senti a falta de perceber. Não me parece que fosse ter grande impacto na minha opinião final.

E sim, eu sei, mas qual é a onda do 3D? Porque raio foi este filme feito em 3D?? (em pós-produção, acrescento, como ávida leitora do American Cinematographer que me tenho tornado nos últimos tempos). Uma grande perda de tempo. E um grande roubo na minha carteira (aparentemente, nesta ilhota, pode-se reutilizar óculos 3D... pffff. Incha pelos óculos...).

Até a maldita música é irritante! Argh. E porquê tanta coisa à volta da "violência" da batalha final? Bocejo.

Eu tenho uma teoria (como sempre). Tim Burton + Disney NÃO FUNCIONA. E por favor, senhor Burton, e digo-lhe isto não como de um membro da audiencia para um realizador, mas como de uma realizadora grande admiradora e confiante no poder da revolução digital para outro - LARGUE OS BRINQUEDOS E TRABALHE. Sinceramente. Até eu me senti uma idólatra do 35 mm no fim deste filme...

Quando achamos que o nosso companheiro de desventuras gastou melhor o dinheiro do bilhete dele porque dormiu durante o filme quase todo... está tudo dito. Argh.


quarta-feira, janeiro 27, 2010

The Road (2009), John Hillcoat



Após um desastre mundial nunca explicado, o mundo caminha lentamente para a extinção da raça humana. O Homem caminha na estrada com o Filho, em busca de alimentos, abrigo e tentando evitar ser comidos por outros ex-seres humanos mais ousados. Em sonhos com alguma cor, o Homem relembra a esposa de tempos idos, que deu à luz o filho quando tudo começou a correr mal, e que preferiu perder-se em direcção à Floresta do que lutar pela sobrevivência com eles. Uma Parábola do Fim dos Tempos, onde o mundo como o conhecemos deixou, pura e simplesmente, de existir.

Se há filme com uma lógica de marketing retorcida, esse é A Estrada. Anunciado como uma adaptação de Cormac McCarthy, o autor do livro que deu origem ao oscarizado Este Pais Não É Para Velhos, não é preciso ter dois palmos de testa para chegar à conclusão óbvia de que o estilo sombrio de Cormac McCarthy resulta de maneira muito diferente através dos irmãos Coen, com o seu culto da comédia negra, e com John Hillcoat – (conhecido pelos seus “dramas com testosterona”, entre os quais se conta A Proposta) atrás da câmara de um drama pós-apocalíptico que nada tem de cómico.

Isso não impede de A Estrada ser claramente a adaptação literária do ano, numa bastante óbvia piscadela de olhos à Academia (estratégia que envolveu mesmo mudar a data de estreia, e que, como soubemos à data, não resultou).
Para isso contribui, sem sombra de dúvidas, a escolha de Viggo Mortensen para o protagonista, o Homem, quase irreconhecível dos tempos de Aragon, e afirmando-se definitivamente como um dos grandes actores da actualidade (aliás, reescrevo, Um Dos Grandes Actores da Actualidade). Kodi Smit-McPhee, o jovem actor que com ele contracena como Filho, é também um caso de grandes esperanças, e o laço que transmitem à audiência faz com que seja impossível não nos arrepiarmos quando o Homem ensina ao Filho como se suicidar com a pistola, caso sejam encontrados pelos canibais. Mesmo as breves aparições de Charlize Theron, Guy Pearce e Robert Duvall não conseguem ser tão convincentes, tão positivamente desprovidas de star power como as de Mortensen e Smit-McPhee.

Qual é o tema deste filme? Pode-se afirmar que é a relação primordial do sangue entre pai e filho em estranhas circunstâncias, mas pessoalmente vemos em A Estrada a velha (e aborrecida) historia do Bem e do Mal, e um argumento um bocado para o onanista sobre o que significa ser uma boa pessoa: partilhar o último naco de pão com um estranho ou proteger toda a comida para dar a um filho? E para que não restem dúvidas sobre a complexidade moral humana, o Homem que cruelmente se vinga do ladrão que lhe poupou o Filho vê-se a ser chamado à razão pelo Filho. No fim, resta apenas o Medo – o medo dos estranhos que percorrem a Estrada, o medo do ladrar do cão que fá-los abandonar o abrigo de volta ao desconforto exterior.


Para onde vai a Estrada? Para que “pote de ouro” no fim do arco-íris monocromático conduz? O que é que aconteceu para o mar já não ser azul? Estas questões nunca são respondidas, dando a toda a história um tom místico, pontuado pelo castanho sujo do céu (tão sujo como a cara do Homem). Este misticismo não é de todo positivo – pelo contrário, não percebemos bem o que é suposto pensar quando os créditos finais rolam. É o fim uma mensagem de esperança? Para quê procurar a sobrevivência quando clima e terra estão mortos? Porque é que não há uma aplicação no IPhone que resolva os problemas?
Hillcoat quis centrar as atenções na luta pela sobrevivência, empregando um estilo despojado de beleza (“bruto”, chamam-lhe) e utilizando cenários reais – algo incrível de acreditar, após o visionamento do filme. De facto, apenas o céu foi removido digitalmente. Um triunfo do director de fotografia, o espanhol Javier Aguirresarobe (O Sol no Marmeleiro, Os Outros, Mar Adentro), que ganhou o prémio de melhor cinematografia da San Diego Film Critics Society Awards. E para eu estar a gabar um espanhol, é porque o senhor é mesmo bom, acreditem.

Infelizmente, o potencial da história e do elenco não se realiza totalmente no produto final, que não tem nem metade da intensidade de (outra história de sobrevivência) O Náufrago, ou mesmo, na mesma vertente de drama pós-apocalíptico, o excelente O Tempo do Lobo de Haneke. Há qualquer coisa que falta para nos prender à narrativa durante mais do que uns escassos e cronometrados momentos, um efeito de distanciamento efectivo que não parece ter sido planeado. A isso ajuda a banda sonora de Nick Cave, de uma beleza extrema, mas ao contrário do que acontecera com O Assassinato de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford, não parece servir a este filme. É-lhe estranha, intrusiva mesmo a pontos, e não pontua de maneira nenhuma as imagens que aparecem no ecrã. Estará Cave apenas a fazer o frete de pagar um favor a um amigo? Ou é apenas a tentativa de Hillcoat de fazer um filme duro e anti-comercial? Tentativa essa de sucesso, já que o mundo de A Estrada não podia estar mais distante das cores de Pandora(também não temos cenas de sexo azuis, ou de qualquer outra cor, diga-se de passagem. Por outro lado, não consegue ter o encanto e inteligência de um filme de culto como Terra de Cegos, ou a polémica de um Anticristo. Inclinamo-nos a pensar que é demasiado ambicioso na adaptação literária para poder ser um bom filme. Nunca duas horas pareceram tão longas. E num cantinho da mente, o desejo que este guião tivesse ido parar à mesa de um Rolland Emmerich ou mesmo, os deuses nos salvem, de um Michael Bay num dia bom. Sugira-se uma mudança de título para “À beira da Estrada, sem ir a Lado Nenhum”.

Avatar (2009), James Cameron

The Hurt Locker (2009), Kathryn Bigelow

segunda-feira, janeiro 18, 2010

Das Weisse Band (2009), Michael Haneke



Um filme de Haneke é sempre um acontecimento. Desde Funny Games na sua versão original, passando pelo perturbante Caché (seja lá qual for a inspirada tradução do título para português) até A Pianista que nos habituámos a ser surpreendidos, chocados e profundamente incomodados por tudo o que sai da sua imaginação narrativa retorcida.

Mas eis que surge O Laço Branco, e somos confrontados com um objecto que nos faz pensar que as viagens no tempo são possíveis, e estamos perante um filme de Bergman, aliás, uma combinação de Tarkovsky com Bergman, uma delícia cinematográfica para os cultores da velha escola. Qualquer plano deste filme é um pequeno orgasmo visual. (1)Mas não se pense que Haneke se limita ao pastiche inconsequente – bastam dez minutos de filme para sabermos que estamos novamente no mundo estranhamente distante de uma sociedade corrompida a que o cineasta austríaco tão bem nos habituou.

Mais uma vez, as “pequenas guerras”, o tema preferido do realizador, são apresentadas através da voz de um velho professor, que relembra os estranhos acontecimentos numa pequena vila austríaca pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial. Tudo começou quando o médico caiu do cavalo – daí até ao fim, mortes, assassinatos, violência gratuita, incesto e até uma pequena brisa de amor inocente são-nos apresentados através de um inesperado não-explícito (ie tudo acontece fora de câmara) que povoa a imaginação dos espectadores com rumores e insinuações muito mais fortes que qualquer factualidade mostrada no ecrã. Este é decididamente um caso em que uma imagem pode valer por mil palavras, mas o não dito vale por mil imagens. E consegue-se finalmente o impossível - fazer um filme sobre a Segunda Guerra Mundial passado umas dezenas de anos mais cedo.

Para acentuar o distanciamento da audiência – é sabido que Haneke não é grande fã da manipulação emocional, preferindo jogar com a inteligência – todo o filme é num preto e branco que quase cai na beleza (cortesia do cinematógrafo Christian Berger, colaborador habitual de Haneke) e não há música extra-diegética. Com um estilo lento, de câmara circunspecta nos seus parcos movimentos (veja-se a cena onde o Professor visita Eva a primeira vez, onde nos sentamos ao lado dos irmãos dela observando o acanhado casal), mas que nunca se torna desinteressante ou aborrecido, O Laço Branco dá uma chapada de luva branca a muitos filmes supostamente artísticos barra europeus que culpam a cultura pop de massas pelos fracos resultados de bilheteira. Para ver e rever e ver e rever e ver e rever... Bem, vocês perceberam a ideia.

(1) Não resisto a, num pequeno momento de trivia inconsequente, dizer que foi tudo originalmente filmado a cores porque os produtores não se deixaram convencer pelos argumentos de Haneke. Isto é, até verem o bicho que tinham em mãos.