quarta-feira, janeiro 27, 2010

The Road (2009), John Hillcoat



Após um desastre mundial nunca explicado, o mundo caminha lentamente para a extinção da raça humana. O Homem caminha na estrada com o Filho, em busca de alimentos, abrigo e tentando evitar ser comidos por outros ex-seres humanos mais ousados. Em sonhos com alguma cor, o Homem relembra a esposa de tempos idos, que deu à luz o filho quando tudo começou a correr mal, e que preferiu perder-se em direcção à Floresta do que lutar pela sobrevivência com eles. Uma Parábola do Fim dos Tempos, onde o mundo como o conhecemos deixou, pura e simplesmente, de existir.

Se há filme com uma lógica de marketing retorcida, esse é A Estrada. Anunciado como uma adaptação de Cormac McCarthy, o autor do livro que deu origem ao oscarizado Este Pais Não É Para Velhos, não é preciso ter dois palmos de testa para chegar à conclusão óbvia de que o estilo sombrio de Cormac McCarthy resulta de maneira muito diferente através dos irmãos Coen, com o seu culto da comédia negra, e com John Hillcoat – (conhecido pelos seus “dramas com testosterona”, entre os quais se conta A Proposta) atrás da câmara de um drama pós-apocalíptico que nada tem de cómico.

Isso não impede de A Estrada ser claramente a adaptação literária do ano, numa bastante óbvia piscadela de olhos à Academia (estratégia que envolveu mesmo mudar a data de estreia, e que, como soubemos à data, não resultou).
Para isso contribui, sem sombra de dúvidas, a escolha de Viggo Mortensen para o protagonista, o Homem, quase irreconhecível dos tempos de Aragon, e afirmando-se definitivamente como um dos grandes actores da actualidade (aliás, reescrevo, Um Dos Grandes Actores da Actualidade). Kodi Smit-McPhee, o jovem actor que com ele contracena como Filho, é também um caso de grandes esperanças, e o laço que transmitem à audiência faz com que seja impossível não nos arrepiarmos quando o Homem ensina ao Filho como se suicidar com a pistola, caso sejam encontrados pelos canibais. Mesmo as breves aparições de Charlize Theron, Guy Pearce e Robert Duvall não conseguem ser tão convincentes, tão positivamente desprovidas de star power como as de Mortensen e Smit-McPhee.

Qual é o tema deste filme? Pode-se afirmar que é a relação primordial do sangue entre pai e filho em estranhas circunstâncias, mas pessoalmente vemos em A Estrada a velha (e aborrecida) historia do Bem e do Mal, e um argumento um bocado para o onanista sobre o que significa ser uma boa pessoa: partilhar o último naco de pão com um estranho ou proteger toda a comida para dar a um filho? E para que não restem dúvidas sobre a complexidade moral humana, o Homem que cruelmente se vinga do ladrão que lhe poupou o Filho vê-se a ser chamado à razão pelo Filho. No fim, resta apenas o Medo – o medo dos estranhos que percorrem a Estrada, o medo do ladrar do cão que fá-los abandonar o abrigo de volta ao desconforto exterior.


Para onde vai a Estrada? Para que “pote de ouro” no fim do arco-íris monocromático conduz? O que é que aconteceu para o mar já não ser azul? Estas questões nunca são respondidas, dando a toda a história um tom místico, pontuado pelo castanho sujo do céu (tão sujo como a cara do Homem). Este misticismo não é de todo positivo – pelo contrário, não percebemos bem o que é suposto pensar quando os créditos finais rolam. É o fim uma mensagem de esperança? Para quê procurar a sobrevivência quando clima e terra estão mortos? Porque é que não há uma aplicação no IPhone que resolva os problemas?
Hillcoat quis centrar as atenções na luta pela sobrevivência, empregando um estilo despojado de beleza (“bruto”, chamam-lhe) e utilizando cenários reais – algo incrível de acreditar, após o visionamento do filme. De facto, apenas o céu foi removido digitalmente. Um triunfo do director de fotografia, o espanhol Javier Aguirresarobe (O Sol no Marmeleiro, Os Outros, Mar Adentro), que ganhou o prémio de melhor cinematografia da San Diego Film Critics Society Awards. E para eu estar a gabar um espanhol, é porque o senhor é mesmo bom, acreditem.

Infelizmente, o potencial da história e do elenco não se realiza totalmente no produto final, que não tem nem metade da intensidade de (outra história de sobrevivência) O Náufrago, ou mesmo, na mesma vertente de drama pós-apocalíptico, o excelente O Tempo do Lobo de Haneke. Há qualquer coisa que falta para nos prender à narrativa durante mais do que uns escassos e cronometrados momentos, um efeito de distanciamento efectivo que não parece ter sido planeado. A isso ajuda a banda sonora de Nick Cave, de uma beleza extrema, mas ao contrário do que acontecera com O Assassinato de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford, não parece servir a este filme. É-lhe estranha, intrusiva mesmo a pontos, e não pontua de maneira nenhuma as imagens que aparecem no ecrã. Estará Cave apenas a fazer o frete de pagar um favor a um amigo? Ou é apenas a tentativa de Hillcoat de fazer um filme duro e anti-comercial? Tentativa essa de sucesso, já que o mundo de A Estrada não podia estar mais distante das cores de Pandora(também não temos cenas de sexo azuis, ou de qualquer outra cor, diga-se de passagem. Por outro lado, não consegue ter o encanto e inteligência de um filme de culto como Terra de Cegos, ou a polémica de um Anticristo. Inclinamo-nos a pensar que é demasiado ambicioso na adaptação literária para poder ser um bom filme. Nunca duas horas pareceram tão longas. E num cantinho da mente, o desejo que este guião tivesse ido parar à mesa de um Rolland Emmerich ou mesmo, os deuses nos salvem, de um Michael Bay num dia bom. Sugira-se uma mudança de título para “À beira da Estrada, sem ir a Lado Nenhum”.

Avatar (2009), James Cameron

The Hurt Locker (2009), Kathryn Bigelow

segunda-feira, janeiro 18, 2010

Das Weisse Band (2009), Michael Haneke



Um filme de Haneke é sempre um acontecimento. Desde Funny Games na sua versão original, passando pelo perturbante Caché (seja lá qual for a inspirada tradução do título para português) até A Pianista que nos habituámos a ser surpreendidos, chocados e profundamente incomodados por tudo o que sai da sua imaginação narrativa retorcida.

Mas eis que surge O Laço Branco, e somos confrontados com um objecto que nos faz pensar que as viagens no tempo são possíveis, e estamos perante um filme de Bergman, aliás, uma combinação de Tarkovsky com Bergman, uma delícia cinematográfica para os cultores da velha escola. Qualquer plano deste filme é um pequeno orgasmo visual. (1)Mas não se pense que Haneke se limita ao pastiche inconsequente – bastam dez minutos de filme para sabermos que estamos novamente no mundo estranhamente distante de uma sociedade corrompida a que o cineasta austríaco tão bem nos habituou.

Mais uma vez, as “pequenas guerras”, o tema preferido do realizador, são apresentadas através da voz de um velho professor, que relembra os estranhos acontecimentos numa pequena vila austríaca pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial. Tudo começou quando o médico caiu do cavalo – daí até ao fim, mortes, assassinatos, violência gratuita, incesto e até uma pequena brisa de amor inocente são-nos apresentados através de um inesperado não-explícito (ie tudo acontece fora de câmara) que povoa a imaginação dos espectadores com rumores e insinuações muito mais fortes que qualquer factualidade mostrada no ecrã. Este é decididamente um caso em que uma imagem pode valer por mil palavras, mas o não dito vale por mil imagens. E consegue-se finalmente o impossível - fazer um filme sobre a Segunda Guerra Mundial passado umas dezenas de anos mais cedo.

Para acentuar o distanciamento da audiência – é sabido que Haneke não é grande fã da manipulação emocional, preferindo jogar com a inteligência – todo o filme é num preto e branco que quase cai na beleza (cortesia do cinematógrafo Christian Berger, colaborador habitual de Haneke) e não há música extra-diegética. Com um estilo lento, de câmara circunspecta nos seus parcos movimentos (veja-se a cena onde o Professor visita Eva a primeira vez, onde nos sentamos ao lado dos irmãos dela observando o acanhado casal), mas que nunca se torna desinteressante ou aborrecido, O Laço Branco dá uma chapada de luva branca a muitos filmes supostamente artísticos barra europeus que culpam a cultura pop de massas pelos fracos resultados de bilheteira. Para ver e rever e ver e rever e ver e rever... Bem, vocês perceberam a ideia.

(1) Não resisto a, num pequeno momento de trivia inconsequente, dizer que foi tudo originalmente filmado a cores porque os produtores não se deixaram convencer pelos argumentos de Haneke. Isto é, até verem o bicho que tinham em mãos.