Há muito, muito tempo que um trailler não me despertava tanta vontade de ver um filme. Compreenda-se: a música de Dario Marianelli deixa qualquer ser com um pingo de sensibilidade artística completamente hipnotizado. O uso da máquina de escrever como instrumento musical… Isto numa música deliciosamente tonal, mas que roça o wagneriano em alguns momentos… Mais, a fotografia belíssima que o trailler deixa entrever, as cores, a patine discreta da imagem (sim, Joe Wright nasceu para fazer adaptações Jane Austen e afins, e desde quando é que isso é uma coisa má? Ele reinventou o filme de época, temos de dizê-lo sem vergonhas).
Ora, apesar de tudo o trailler diz muito pouco do filme. What? Sim, muito pouco mesmo. Mais: engana-nos. Ilude-nos. Intriga-nos, supostamente responde-nos, mas afinal dá-nos a volta que nem uns tolinhos.
História? Briony, miúda de 12 anos, surpreende umas interacções românticas entre a irmã Cecília e Robbie, o filho quase médico da governanta – e sua paixão platónica, acrescente-se. Por despeito, por vingança, ou por má interpretação, mete Robbie num belíssimo sarilho, que irá separar Cee do seu amor durante muito, muito tempo, destruindo qualquer possibilidade de felicidade para os três. Porque a cabra ingénua que é Briony resolve estragar também a sua vida em consideração para com a irmã. E depois a guerra. E depois o reencontro, a hora da verdade. E depois… o livro.
Atonement é muito mais que uma história de amor. É uma meditação profunda sobre o que significa o arrependimento e – como é que os idiotas dos críticos portugueses permanecem cegos para algo tão gritante – uma reflexão artística sobre os limites morais da ficção. E se podemos achar que, inicialmente, a opção em dar-nos a ver o ponto de vista de Briony primeiro, depois o que realmente se passou, é um pouco, como dizer, ‘piroso’, quando chegamos ao fim percebemos que devíamos ter mais cuidado com os pontos de vista que nos atiram para os olhos.
Há quem acuse o filme de estar bem filmado demais, o que me dá uma vontade imensa de rir. Que raio de critério é esse? Wtf? E comparar aquele que estou certa se tornará um marco na história do cinema, nem que tenha de ser eu a escrevê-la (já era tempo de uma mulher se propor a isso, para vingar injustiças com géneros ditos menores por uma cambada de estudiosos falocântricos e patriarcais) a um ‘telefilme’ – João Lopes, mas que raio de coisa. Um telefilme é uma coisa assim tão asqueirosa (e digo que não concordo mesmo nada com a comparação, apenas saída de um preconceito enorme para as adaptações de ‘romances’ com protagonistas mulheres, sobretudo)? Bem filmado demais? Exibicionismo técnico? Jorge Sauron Mourinha aposta nesta linha. Hum… ter-se-á enganado na sala e ido ver o Elizabeth II? Isso sim é exibicionismo técnico – mesmo que queiramos só estamos a ver a câmara a mexer, mexer, mexer, olhem que bem que mexo a câmara. Agora a técnica de Atonement – primeiro, nem é assim tão gritante, se exceptuarmos o plano-sequência na praia de Dunkirk. Depois, toda a técnica é justificável pelas exigências narrativas. Eu sei que em Portugal há um certo analfabetismo voluntário das técnicas narrativas hollywoodescas tidas como ‘o Demo, Senhor dos Infernos da Ilusão Cinematográfica e do Entretenimento’, mas noutros países, a câmara funciona como se fosse, digamos, uma caneta, que adjectiva e faz metáforas com a imagem. Oh, entramos no filme, que está belíssimamente construído, banda sonora soberba, imagem linda, linda, linda, e não bocejamos uma única vez, nem olhamos para o relógio. Credo, deve ser terrivelmente mainstream e apelativo às massas incultas! Vamos exorcizá-lo com uma bolinha preta e chamá-lo de piroso! Vade Retro cinema que ganha globos de ouro!
Uf!
(lady sara c, defensora dos filmes em que apenas o tempo provará que até tenho razão algumas vezes)
De novo ao filme. Mais uma vez, obrigada a falar da banda sonora. A interligação do som diegético com a música de Marianelli parece-me um dos mais perfeitos até hoje realizados. Quanto ao tal plano-sequência de tal forma genial que ninguém consegue atacá-lo directamente, preferindo dizer que nem parece do filme, foi inserido a martelo – deuses, são uns 5 minutos de Steadycam a levar-nos por entre um cenário desolador, queriam que continuassem os tons amarelos, e as coisinhas bonitas? Seria ridículo. (mais uma vez no plano-sequência se vê o poder da banda sonora, quando nos aproximamos dos soldados a cantar em direcção ao mar)
Actores: palmas para as três intérpretes de Briony, uma personagem poderosíssima, sobretudo na sua versão infantil (Redgrave destoa um bocado das três, mas perdoamos-lhe porque 1º é uma excelente actriz, e não desilude 2º, dá-nos a Briony verdadeira. Keira Knightley estranhamente sensual no seu vestido verde, ar snob e sotaque, bastante bem (o que é perigoso, porque podem pensar que ela só sabe fazer este tipo de personagens feministas q.b.); James McCavoy, hum, mudança extrema entre o despreocupado Robbie e o soldado demente (assustador neste momento); verdadeiramente detestável e por isso promissora rapariguinha que interpreta Lola, a prima do Norte.
Por fim, falemos do realizador. Quem viu o filme anterior, Orgulho e Preconceito, sentiu que estava ali qualquer coisa, mas que ainda raspava muito à superfície, muito comedido, pouco ousado (é que nem um beijito durante o filme todo), e tirando Knightley, todos pareciam figuritas de cartão. Agora… agora estamos perante uma Gesamtkunstwerke. Será Wright uma reencarnação de Wagner? Será que alguém vai ter vontade de invadir a Polónia no fim de ouvir Marianelli?
De vontades, só de esperar ansiosamente o próximo filme do senhor. E afirmar aos quatro ventos que estamos perante um clássico. E lembrar aos senhores críticos que E Tudo o Vento Levou tem muito mais de telefilme que este, duh, e nada o impede de ser bom na mesma. Frankly, my dears… f*uck them.
2 comentários:
aplaudo o teu regresso às criticas inspiradas, só não se pode perdoar ali em baixo chamares "Ingrid" ao Ingmar Bergman. Acho que o próprio Allen não teria pejo em te dar umas boas bofetadas por isso...
Estava a pensar na boazona do Casablanca, peço desculpa. Se bem que tenho a teoria que o Bergman sempre foi um bocado gaja, no fundo no fundo.
(mas pelo menos sei escrever Scorsese, meu caro)
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