terça-feira, janeiro 29, 2008

Knocked Up (2007), Judd Apatow

Coisa que este filme teve, sem dúvida, foi um dos traillers mais originais (e divertidos) do ano, que se limitava a mostrar uma das cenas mais fortes do filme, a do restaurante, quando Allison (interpretada por Katherine Heigl) revela a Bem (Seth Rogen) que… hum… está um pãozinho no forno. A cena é tão genial que os senhores da Total Film não hesitam em colocá-la na secção ‘Classic Scenes’.

Hum.

Lamento informar, mas se demorei algum tempo a correr a ver este filme (aliás, fui vê-lo um bom mês e meio depois de estrear, porque não havia nada mais interessante por estes lados – para verem o deserto cultural que isto é), foi porque tinha medo do que acabou infelizmente por se revelar – não achei assim graaaande comédia. Pelo menos uma que mereça tanta atenção. E a Kel, minha fiel companheira, o meu termómetro pessoal para ver se sou eu que me estou a armar em crítica intelectual ou se estou a ter uma reacção sincera às coisas, também não achou grande piada.

Depois apercebi-me que, embora ninguém tivesse detestado a coisa, havia aqueles que simplesmente tinham adorado e aqueles que não acharam nada de especial. E por fim – sim, isto já parece mais um estudo sociológico do que uma crítica, mas tenham calma – compreendi que todos aqueles que tinham adorado eram Homens.

Daí a minha teoria fantástica: Knocked Up, em português Um Azar do Caraças, é um ‘chick flick para gajos’. Tenho dito. Porquê?

Qualquer gaja familiarizada com as fórmulas dos filmes de gajas, comédias românticas e afins, sente que está perante os mesmos moldes mas com uma enoooorme diferença – aqui a princesa adormecida é um gajo pouco atraente, sem indícios de futuro promissor, alérgico a compromissos, que prefere passar o tempo a trabalhar num site sobre momentos skin flick no cinema. Ela, pelo contrário, é bonita, bem sucedida, inteligente. Ora, tal como nós gajas gostamos de pensar que o Richard Gere nos virá resgatar do nosso aborrecido quotidiano vestido de uniforme branco, pelos vistos a população masculina precisa de ser tranquilizada quanto à nossa suposta preferência (que nem é assim tão virtual como isso) por metro- e übessexuais. Tal como qualquer chick flick, o filme está recheado de clichezinhos que, para nós, mulheres supostamente emancipadas do século XXI, não vão lá muito bem com a nossa cara. Não, não somos umas taradas dos compromissos maritais. Não, não somos ultra-possessivas obrigando os respectivos companheiros a mentirem para jogarem ‘basebol virtual’ com os amigos. Aliás, veja-se como todo o filme está construído de forma a desculpar aquilo que muitas tipas – eu não, desisti dos homens e resolvi dedicar-me a algo muito mais simples: a programação de computadores – designam por criancice eterna masculina. Sim, porque nós somos tããão adultas, e queremos bebés, e somos responsáveis, e etc etc…

Mas não estou a falar do filme, eu sei. Vê-se bem, não é odioso, de maneira nenhuma. Tem momentos francamente engraçados, mas nunca dá para rir a bandeiras despregada, como, por exemplo, em Doidos por Mary. Porquê? Não sei. Será a temática? Talvez. Acrescente-se um dos momentos mais despropositados de sempre: no momento da ‘parição’, após os desmaios masculinos ao olharem para o ‘milagre da vida’ (mais um cliché em acção), é-nos mostrado o evento em si, em toda a sua depilação. Pequeno aviso, meu caro Apatow: não é só nos filmes eróticos que mostrar demais estraga o clima. Aliás, deixem-me explicar melhor para não me tomarem por puritana: não era preciso mostrar, porque assim criávamos melhor na nossa cabeça as imagens dos piores pesadelos. Não, não estamos a estudar obstetrícia, obrigado pelo slideshow na mesma.

No fundo, no fundo – tenho pena, mas já vi o filme há algum tempo, não me lembro de muitos pormenores, sorry – tudo me soou como um mega-episódio dos Friends. Isso não é necessariamente mau, mas daí até chamarem a isto a melhor comédia desde há muito…

Calminha, sim?

terça-feira, janeiro 15, 2008

Shoot 'em Up (2007), Michael Davies

Imaginem o Bugs Bunny e o Caçador, naqueles desenhos animados que preenchiam as nossas manhãs de fim-de-semana, quando éramos novos e inocentes. Agora imaginem que o Bugs Bunny tinha um jeitão com as armas. Cruzem-no com um Steven Seagal, Exterminador Implacável, James Bond, Jet Li, etc etc. Tudo isto dentro do charme do Clive Owen, o único homem que consegue salvar o Mundo de chinelos de enfiar no dedo e o único para o qual eu cozinharia e passaria roupa de sorriso nos lábios. Mesmo assim, mes amis, ainda estão a léguas do que este filme é. Milhas e milhas away…

E não, este não é um filme de gajos, embora tenha a Mónica Bellucci a fazer de prostituta leiteira (literalmente) e muitos, muitos tiros. É coisa que fique na história do cinema, que uma pessoa vá estudar daqui a alguns anos com respeito e veneração? Ná… Mas que interessa isso, num ano tão miserável como este, em que todos os filmes que talvez merecessem o meu respeito ou não vieram para Coimbra ou só cá ficaram uma semana? (eu sei, a net, mas algo em mim odeia filmes sacados).

Todo o filme que consegue manter o mesmo ritmo implacável do início ao fim, fazendo-me rebolar a rir com as incríveis sequências de acção, desde o primeiro plano de um Clive Owen a mastigar calmamente uma cenoura, sentado num banco, à espera do autocarro, até ao final de um Clive Owen todo esmurrado – deuses – também à espera do autocarro. Mr. Smith – o nome da personagem – apresenta-se como um homem implacável, com um passado que nunca nos é apresentado, e um futuro para o qual não somos convidados. Paródia aos filmes de acção dos anos 80? Parece-me demasiado redutor chamar-lhe isso.

E como não só de criticas deita-abaixo os senhores instituídos, deixem-me aqui louvar Jorge Sauron Mourinha pelas belíssimas palavras sobre o filme:

É um filme xunga que meteu o turbo à potência atómica, um desenho-animado absurdo de imagem real, um objecto deliberada e orgulhosamente idiota que tem como único fim pôr Clive Owen a matar o máximo de oponentes do modo mais implausível possível no mínimo espaço de tempo sem perder a pinta.(…) E, melhor ainda, toda a gente que trabalhou nele sabe-o e passa o tempo a piscar o olho ao espectador (a começar por Clive Owen e um Paul Giamatti impossivelmente cabotino). Como não gostar de um filme tão desavergonhado - e tão desavergonhadamente idiota - assim?

É por estas e por outras que eu acredito que os críticos de cinema do Público, no fundo no fundo, nem são más pessoas (ou críticos). Sem dúvida, a grande personagem do filme é Clive Owen (como me sabe bem teclar o nome dele… ahahahahha), com o seu ar enfarruscado e suado, trincando cenouras, os seus one-liners poderosíssimos (desde o óbvio What’s up, Doc?, que nos faz pensar – uau, isto do cinema pós-moderno, citacional e de palimpsesto foi a melhor coisa que aconteceu depois do Steve Jobs voltar para a Apple!) até I’m a British nanny, and I’m dangerous, passando por Fuck you, ya fucking fuckers. Mas Paul Giamatti… como dizer isto… ‘cabotino’ é sem dúvida o melhor adjectivo. Não só tem um toque de telemóvel genial (A Cavalgada das Valquírias de Wagner), que o interrompe sempre a meio de alguma matança (“Yes, honey? I can’t talk right now, I’m in the middle of something”), até a sua perversidade cinéfila (“Does anyone know what a Jimmy Cagney love scene is? It's when Cagney lets the good guy live.”), até à incrível, e esta sim, merece figurar na História do Cinema, frase: “Tit for tat, Mr. Hero. Tit for tat.”
Monica Bellucci? Sempre linda, mais velhinha é certo, com os seus enormes seios a baloiçarem pelo ecrã.

E o realizador, quem é? Michael Davies, uma quick search no IMDB e fico a saber que o único filme que vi dele foi o 100 Girls. Lembram-se? A história daquele tipo que tem uma noite de sexo escaldante no elevador da residência universitária e não sabe com quem? Pois. Eu lembro-me bem do amigo dele, daquele que pendurava pesos nas… pendurezas… para ver se esticava algumas coisa. Uma comédia adolescente um bocado estranha.

Banda sonora… estou a ouvi-la enquanto escrevo isto. Muito rock, muita acção, tudo o que se pedia, de facto. Palmas para o senhor Paul Haslinger, ex-membro dos Tangerine Dream, agora a solo.

Melhores cenas? Ui, difícil é escolher… Digamos que a cena de sexo está entre as melhores que alguma vez vi (e não digo isto só porque lá está o Clive Owen), assim como quando Mr. Smith espanca a mãe de uma criança, todas os momentos cenourísticos, a cena em que julgamos que, finalmente, o mauzão da fita conseguiu matar o bebé, e o momento final frente à lareira. Pronto, de resto vejam. Adoro especialmente o facto de não perderem tempo a explicar o pretexto para a história – aquilo das armas, etc etc – porque o que interessa, sem dúvida, é ver o Clive Owen aos tiros. O resto … fuck it.



quinta-feira, janeiro 03, 2008

Fay Grim (2007), Hal Hartley


A mera menção ‘independente americano’ me faz correr, por norma, para as salas de cinema. Nunca tinha visto nada do senhor Hartley que, segundo a Ipsílon, teve o seu apogeu com três filmes no início dos anos 90 e depois embarcou numa viagem sem regresso para o mundo da Decadência Cinematográfica (críticos maldosos – eu recuso-me a acreditar antes de ver – dizem que o pai Coppola também por lá anda). ~

Fay Grim seria assim o aguardado regresso de Hartley ao caminho do bem. Repito, nunca tinha visto nada do senhor. E não vi nada depois de Fay Grim. A vontade que tinha desapareceu como por encanto. Como não tenho base de comparação, não acho justo fazer aqui um ataque ao filme ou ao realizador. Costuma-se dizer que os filmes que odiamos quando vemos a primeira vez correm sérios riscos de se tornarem os nossos preferidos anos mais tarde. Eu odiar não odiei, mas passei pelas brasas, que é uma coisa que nunca antes me tinha acontecido no cinema. Estava cansada, sim, mas não tãããão cansada assim. Os meus dois companheiros de sala ficaram até ao fim dos créditos, i.e., intelectuais. Não percebi se gostaram ou não. Saí rapidamente e fui tomar café.

Não gosto de críticas impressionistas, mas não sei como falar deste filme. Não sei mesmo. Irritou-me profundamente. Coisa que me irrite mais só Godard, mesmo. (sim, heresia, vou arder no Inferno, temos pena – estou Truffautizada, não gosto do Jean-Luc nem coberto de chocolate). As letras gigantes, os créditos a arrastarem-se durante a meia-hora inicial, as piadinhas intelectuais… deuses, se o francês tivesse morrido eu jurava que tinha reencarnado. Boa, boa, era a actriz – no sentido de qualidade de representação, explicite-se. E o guarda-roupa. A história? Um policialzeco muito estranho, talvez escrito por um pseudo-Dan Brown. Continuação de Henry Fool, soube depois. Planos… fácil. Os ímpares inclinados para a esquerda, os pares para a direita. Não, não estou a gozar. Sempre assim, até ao fim. Sim, irrita bastante. Final? Do que me lembro, do mais previsível possível.

Mas contenho-me. Será que estou a insultar o Varèse do cinema? Será quer é demasiado profundo e à frente para eu entender? Ou é pura e simplesmente oco e ninguém tem coragem de dizer que o rei vai nu? Não sei (penso maldosamente que se o realizador fosse português nem eu tinha dúvidas existenciais nem os críticos – penso eu, mas não ponho as mãos no fogo/figo – seriam tão expansivos).

Há filmes que tenho de ignorar e ver noutra fase da minha vida. Este deve ser um deles. Até daqui a alguns anos, então.

Beowulf (2007), Robert Zemeckis


Quando eu era uma criança inocente, o que nem foi assim há tantos anos como isso, tinha uma VHS em casa que estava sempre a meter no vídeo. Chamava-se Quem Tramou Roger Rabbit? e é, pelo menos, o responsável por eu ter uma fixação nada saudável com vestidos vermelhos brilhantes.


Soube anos depois que o responsável por esse momento de film noir meets cartoons chamar-se Robert Zemeckis e ser pessoa conhecida por fazer filmes bastante bons (O Náufrago - a fazer fé em opiniões alheias - é disso um bom exemplo). Ora, em 2004, se não estou em erro, o dito senhor Zemeckis resolveu empregar uma técnica nova chamada motion capture (entre familiares, carinhosamente tratada por mo-cap) e fez Polar Express. Não, não vi. Só o trailer bastou para não ter vontade nenhuma de gastar o meu rico dinheiro naquilo. Parecia um filme de zombies.


A minha grande dúvida existencial, aumentada uns biliões de vezes depois de ver Beowulf, prende-se com as vantagens de tal sistema. Percebo que a animação permita coisas maravilhosas (entre as quais, não precisar de levantar cedo para dirigir actores), mas ter os actores em carne e osso, pôr-lhes sensores no corpo e depois passá-los a uma animação ‘de sólidos’ tão primitiva que faz com que o Noddy pareça uma coisa sofisticadíssima… Por quê? Por quê? Depois de Finding Nemo, Shrek, e Ratatuille… por que raio as personagens de Beowulf parecem estranhamente semelhantes – aliás, dizendo verdade, ainda menos detalhadas – que os meus puppets dos Sims2? Coincidência? Não vi a referência à EA Games em lado nenhum…


(Soube há pouco tempo que Tim Burton – o Excelso Autor que Não Cumpre Prazos de Pós-Produção Porque É Perfeccionista – vai expandir a sua curta Frankenweenie a longa e pensa usar mo-cap se não nesse, num próximo projecto. Medo, muito medo… ele que nunca me conseguiu desiludir… argh)


Como se não bastasse, tive o prazer de pagar 1.50 por uns óculos 3D, para viver a experiência. A minha opinião sobre o 3D? Bem, as calças boca de sino voltaram, os Rolling Stones dão concertos… porque não o 3D? Apesar de preferir o ressurgimento dos drive-ins e cineclubes a sério, não tenho nada contra os óculos estúpidos. Mas atenção – o filme tem de justificar o uso da técnica. Ora, se faz sentido o Jaws 3D, Infected Spiders From Outer Space 3D e até The Wonderful World of Flying Things in Your Directions 3D, há situações em que não se justifica – de maneira nenhuma. Acrescente-se que aquilo que vi no Beowulf, para mim, não é 3D nenhum – a não ser que consideremos aqueles desenhos para ver com os óculos bicolores na traseira das caixas de Chocapic the real thing. Porque não é uma espada apontada à 3ª fila – coitada de mim que estava bem atrás, assim como todo o espectador europeu que se preze – que me faz dizer Uau na era da Playstation 3 e dos vibradores a luz solar. Nope. Não impressiona.


At last and awfully least, a história em si. Adaptação do conto inglês do século VII, ou VIII, ou IX. Antigo. Nunca li, sorry. Mas estive a cuscar aqui e ali, e não se trata de uma adaptação ipsis verbis. De facto, há uma boa dose daquilo que entre nós, estudantes de cinema pseudo-intelectuais, chamamos de ‘liberdade poética a armar à telenovela da TVI protagonizada por Steven Seagal’. Não querendo estragar o filme aos felizes que vão esperar pelo próximo Natal para o ver no conforto do lar, digamos que aquela história de fazer monstros à Jolie é treta hollywoodesca. Também não há qualquer referência a monstras nuas terrivelmente humanas, bonitas, é certo, e trabalho de câmara suficiente para ilustrar só com essas cenas qualquer compêndio de tomadas de vista de câmara. Só faltou mesmo o in uterus, e até se podia estudar anatomia feminina com aquilo. Reforço ‘feminina’ porque, apesar do filme ser para maiores de 16, e animação, nem uma insinuação de prepúcio ou falta dele nos é dada a ver. Não, não sou uma tarada por piwinhas em filmes, mas quando vemos o senhor Bewulf nu em grande parte do filme, sempre com uma taça/braço/trave/nevoeiro à frente, começamos a achar que a pudendice do senhor Zemeckis em relação ao corpo masculino em todo o seu esplendor (sim, porque estamos a falar do Fantasma da Ópera/Leónidas/Gerald Butler – para quando um musical com ele em tronco nu, ahein?) revela quiçá ou esqueletos no armário ou medo de sair de lá.(esta foi tão profunda que nem eu a atingi em toda a sua imensidão).


Música? Nem me lembro.


Bons momentos? O trailer dos peixes pré-históricos da National Geographic que passou antes do filme. Sim, leram bem. Eu sei que a crítica internacional, sobretudo a americana, vibrou com a coisa. Temos pena.


Depois de 300, depois de Sin City, meu caro Zemeckis… eu – e falo por mais gente do que seria suposto – não como de sorriso alargado qualquer porcaria embrulhada em marketing de vanguarda tecnológica que me ponham à frente. Devias fazer o mesmo.

Land of The Blind (2006), Robert Edwards


Land of the Blind, em português ‘Terra de Cegos’, dirigido por um ainda verdinho Robert Edwards, estreado nos States o ano passado e que só este ano tivemos o prazer de o ver nas nossas salas, no caso de Coimbra numa única semana – já que não se mantém para a próxima – arrasado pela crítica americana, penso que posso dizer desprezado ou ignorado pela portuguesa – não tenho indicações da opinião de Mário Voldemort Torres nem de Jorge Sauron Mourinha; eis que nos encontramos perante um objecto tão estranho e, ao mesmo tempo, tão fascinante, tanto que me apetece dizer, apesar de ainda estarmos em Novembro e Hot Fuzz e Sweeney Todd parecerem prometedores, que foi, pelo menos para mim que não sou ninguém, o filme do ano – estando consciente do irónico que é chamar filme do ano a um filme de 2006.

Quem, por alguma estranha razão, viu o trailer, ficou com a ideia que este seria uma espécie de, para o espectador normal, um Filhos do Homem que muda o ênfase do ambiente para a política, ou, para o espectador ideal e cinematicamente culto, um revisitar de filmes do género 1984, Brazil (Terry Gilliam) ou mesmo Fahrenheit 451 do nosso amigo François Truffaut.

(a propósito, houve um crítico americano – os críticos americanos têm destas coisas, são de uma maldade inteligente e charmosa incrível - que resumiu o filme na expressão Brazil as directed by Ed Wood)

Ou seja, uma distopiazinha à la carte, de esperar umas boquinhas ao senhor Bush Júnior, à guerra no Iraque, uma comparaçãozeca dos Estados Unidos com a Alemanha nazi para escandalizar as pessoas, quiçá uns helicópteros em câmara lenta, Ralph Fiennes a tentar redimir os últimos devaneios da carreira e tentativas de assassinato do Harry Potter… seria o óbvio. Realização convencional, talvez numa mistura de Cronenberg com Spielberg nos seus dias mais felizes, nada muito espampanante, limpinho…

O je ne sais quoi do filme – e se há filme que tem um je ne sais quoi, é este (e esta piadinha só é compreendida por aqueles que tiveram o prazer de o ver) – é que não podia ser mais imprevisível. E vou-me conter para não lançar spoilers sobre spoilers para não estragar surpresas, que são muitas. O início do filme é com uns elefantes. Depois temos footage a armar ao antigo para nos pôr dentro da situação política de um país sem nome, governado pelo segundo membro de uma terrível linhagem, Maximiliano II, que além de ditador é também um convicto realizador de cinema, autor de obras do gabarito como With a Vengeance 4 – em português qualquer coisa do género ‘Implacável Furioso’. Ah, ah, ah, eis a crítica oportuna ao mediatismo de certos políticos, nomeadamente actores que viram senadores e candidatos a presidente que viram documentaristas. Depois, os rituais ridículos, uma Primeira Dama, não de Ferro, mas em bondage, o preso político amado pelo povo, a ajuda de alguém que até que não se sentia muito afectado pelo sistema, mas buga lá mudar o mundo – estou a falar da personagem de Ralph Fiennes - o assassinato, a revolução… e a instauração de uma nova ditadura, ainda pior que a primeira. Bem apanhado, sim senhora, Donald Sutherland numa invocação bárbara e barbística de Karl Marx, um romance ligeiro entre Fiennes e uma bela rapariga. Só que o anterior herói do povo recusa-se a aceitar a nova sociedade em que não há leite nem pão e as mulheres usam burcas, e é enviado para um campo de concentração estranhamente semelhante com um retiro budista. Ui.

Até aqui, tirando os flashes de Fiennes a escrever a história num quarto branco e imagens de elefantes na savana, a correrem, a serem eletrocutados, etc, isto parece um filme normal. A partir do momento em que Fiennes entra no quarto 12… É de deixar o maxilar descair até o nível dos joelhos. Até ao final, abrupto. E saímos da sala a pensar no que foi tudo aquilo, e vamos para casa a pensar naquilo… o que é aquilo?

Apesar da imagem estar cheia de grão, e se notar que Edwards não perdia nada com algumas aulinhas de técnica de realização (fala a rota para o remendado de veludo), mas… há histórias que conseguem fazer-nos esquecer desse tipo de coisas.

A banda sonora portentíssima, uma montagem um bocadinho mtv demais, mas perdoável pela sensação bad trip que nos deixa, Ralph Fiennes abafado por Sutherland, acho eu…

Grandes momentos? Todos. Estou a lembrar-me da cena do editor dos filmes de Maximiliano II, e a pensar se os estúdios não gostariam de ver o método aplicado a alguns trabalhadores mais resistentes (topem a referência intelectual à screenwriters’ strike) … é delicioso por todos os pormenorzinhos que tem, é impossível abarcá-los todos só de uma vez, embora agora tenhamos de esperar que saia em DVD – esperemos que saia em DVD -, ou mais rápido, sacá-lo, ou até, o esforço supremo, fazer o download na Internet mediante o pagamento de uma pequena taxa, com a esperança que nessa altura uma percentagem vá parar ao bolso do argumentista (olhem outra vez a referência…) – que é o próprio realizador, Robert Edwards.

Vamos ver o que aí vem, se ele não desanima com as críticas malvadas e demoníacas da crítica americana, é arriscado fazer um filme ofensivo para gregos e troianos. Eu vou estar à espera. Até estou a pensar em me oferecer como assistente de realização, servir-lhe uns cafés… aposto que, quando ele for famoso, vão todos morrer de inveja. Ah ah ah. Mua-ah-ah. Sim, corram para vê-lo. Não sei como, mas esforcem-se. E depois emprestem, ok? Jocas distopicamente gordas de burca e cabelo rapado.